Poesias de Favela – Aquela mina é Firmeza

Por Jean Mello

Amar é perigoso! Dizer que ama e tentar de todas as formas mostrar as bonitas facetas do amor pode te fazer viver um sofrimento absurdo. Na verdade, não raro é, infelizmente, seres humanos que brincam e zombam do seu ato de amar. Ou, ainda indo mais pra frente, quando você tenta se aproximar de um amor incondicional, algo que nossa natureza humana não alcança completamente, as consequências podem demonstrar a verdade de que “o amor de muitos frio está”. Isso já é presente ao seu lado. Já percebeu?

Não apenas de protesto vive o Rap. Músicas falando de amor já podiam ser encontradas nas frases de Ndee Naldinho no começo do presente século, como é o exemplo de Aquela mina é firmeza: “Mina de ‘responsa’, não tem tempo ruim. É pra qualquer situação, ela é assim… Não atrapalha nas minhas ‘correria’. Sabe viver no dia-a-dia”!

Não era só ele… Xis, “do lado leste”, como ele mesmo diz, dedica seu som para sua “menina mulher da pele preta”.

…na companhia de um querer bem… todo bem que eu desejo à você… Meu sonho além do horizonte que pintou no céu do lado leste quando o sol nasceu. Da poesia tal… Da minha rima que agora é sua sim, na fita por você. Eu trocaria o tom da rima que eu levo na canção. Só por você… E eu seria então o mano mais firmeza da quebrada… Só por você! (Xis, álbum Seja como for, 1999).

Emicida também fala de amor como em “Eu gosto dela” e “Ela diz”. Som que principalmente as mulheres amantes do Rap ouvem. Começa com as palavras que norteiam o restante da canção:

o que mais eu vou querer da vida, além da paz de poder te olhar adormecida. Enquanto o sol traz… O novo dia nos primeiros sinais. ‘Vô’ só olhando e confirmando que eu te amo demais. De mais ‘mermo’, então pra mim isso é verdadeiro só, a própria sensação com você, cada beijo é o primeiro. Desligo o celular, hoje nem ‘vô’ ‘cola’ com os ‘parceiro’. ‘Vô’ ‘fica’ aqui ‘quietin’ com você dividindo um travesseiro só. Por isso eu gosto de quando tá esse friozinho, melhor discupa pra ficar lá abraçadinho. O controle remoto e a caneca com meu ‘cházin’. Teu rosto falando que isso nunca vai tê fim… (Emicida, álbum Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe, 2009).

Crônicas de amor… Dá para reverter à imagem de que irmãos do Rap são apenas machistas. Não, nem todos as tratam como objeto de satisfação ou desejo. As minas, principal beleza das quebradas, principalmente as de pele preta, merecem o mais absoluto respeito e carinho. Vale ressaltar que algumas mulheres não têm a cor de pele originada dos recantos africanos, mas vivem uma negritude de espantar.

Lado não mostrado em abundância por nós todos, comunicadores e jornalistas, mesmo aos que se debruçam em valorizar o nascer do sol nas periferias do Brasil. Ao lado das rimas de mais força, dos desabafos acerca das injustiças sociais, corações partidos e apaixonados batem com a intenção de mostrar o que existe de mais belo. Temporizando o que pulsa nas quebradas. Falando daquilo que já deveria ter sido falado. Manos trocariam tudo que têm pelas suas pretinhas. Vida a dois, sem conto de fadas, nada de castelos de princesas que desfrutam da felicidade para sempre. Realidade, nas dificuldades, no sufocar dos sonhos, periféricos ou não, para melhorar o mundo ou não, tudo isso contido em sons da antiga e da atualidade.

Um texto, simples, não repleto de conhecimentos de profundidade, que nasceu da inevitável densidade da dor. Não aquela dor depressiva que odeia a vida. Apenas o que bate na alma sem pedir licença para entrar e funciona como uma inspiração não solicitada. Como já disse inúmeras vezes nesse veículo que é fruto de muita seriedade e compromisso com tudo que pode impulsionar algum tipo de transformação em pessoas, gente que tem desejos, pessoas que vivem o que não escolheram viver, não escolhi ser cronista. As palavras é que me escolhem e, quando isso acontece, em qualquer lugar, fazendo até coisas não prazerosas, chega um texto inteiro.

Nesse caso inaugurando uma série que me comprometi publicamente. Mas não se engane, não é a primeira vez que falo de amor. Confesso que hoje ao ler coisas do passado sei que em muitas situações falei coisas fora da realidade. Tem de haver um começo, alguma boa caminhada, seria ou ingênua, para reconhecer que qualquer sujeito se constrói.

Só que não me iludo, busco na profundidade compreender que cada palavra tem seu preço. Quem me alertou não foi nenhum professor de escola. Palavras de Mano Brown. “Cada um segura o que fala”. Falou isso em um momento da primeira entrevista que os Racionais deu para MTV.

Voltando ao assunto inicial, amor… Não apenas esse sentimento pela “mina firmeza”. Amor pela quebrada. Vejo manos de ‘responsa’ quase que gritando para que o povo da periferia, gente que vive na pele os perigos em ser quilombola, zumbi, negro e negra, com uma cultura de força e riqueza imensurável. Gente perseguida, mas quem consegue provar o racismo oculto? Eu mesmo acho foda, como cronista corro com a favela. Já senti na pele, várias vezes, o preço alto de não esquecer que Cristo Jesus, o Deus que andava com excluídos e excluídas, o Deus Negro e que tinha os pés fincados na África, e reforçar isso em toda produção que coloco no ar, a dor de não ser entendido ou às vezes até ameaça. Mas como não dizer? Não sou apenas negro, mas tenho consciência plena de minha negritude. Tomando cuidado para não cair nas armadilhas do Racismo às Avessas.

Uma pena que pouca gente entende ou quer assumir. Amor, no Rap, nos movimentos culturais que nascem em favelas, em tempo real, não são apenas as inúmeras letras que falam de um relacionamento ou algo parecido. É a constante luta para evitar que nossos guerreiros andem sem esperança em ter um amanhã diferente.

O Brasil ainda não entendeu o Rap. Assim como ainda não valoriza as comunidades quilombolas, os movimentos negros, intelectuais e militantes de peso e que lutam para um Brasil livre do racismo. Eu mesmo, sem arrogância, e tentando ao máximo ficar bem perto da humildade necessária. Longe de almejar um lugar de saber ou destaque. Apenas, na mais pura verdade, já olhei olho no olho de muita gente que faz a diferença. Trabalhando, incansavelmente, pela igualdade de oportunidades entre negros e brancos.

O amor não é um sentimento ingênuo, imaturo, é o que manos e minas, periféricos, sacaram há tempos. Amam as pessoas, as quebradas e, com um oceano de dores, não conseguem apagar da memória os Rios de Sangue gerado pelas injustiças sociais. Provas têm aos montes, relatórios também, pesquisas acadêmicas de qualidade podemos ver nas principais universidades, notícias de sensacionalismo, com um teor agressivo de manipulação, nem precisa se esforçar para ver. E agora? As coisas que estão sendo feitas para trás ficam?

Amor que corrói o que nos oprime: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 19.19)

Não conheço algo mais poderoso e coerente que isso. Mas quem é consegue viver essas simples palavras?

Sem querer interromper, mas me lembro, nunca vou me esquecer de como escrevi uma crônica em que estou noDivã da Existência.

O que isso tem a ver com as quebradas? Tudo! Seres humanos falíveis, repletos de limitações que toda pessoa tem, tentam ao máximo tornar público o compromisso que eles têm com os becos e vielas em que, ainda insisto em dizer, as muitas ruas ainda são de terra e inúmeras casas ainda de pau.

Lógico que a tentação capitalista, dos bens simbólicos, ataca nossos irmãos. Com tanta massificação marqueteira quem é que não quer ter algo que coloque a popularidade em máxima evidência? As minas mais belas pagam um pau… São reféns da mesma lógica. Respeito e ao mesmo tempo força. Sei que o capitalismo não vai perdurar para sempre. Mas, em minha modesta opinião, creio que será substituído por sistemas ainda mais exploradores. Além de a história apontar para isso, assumo com tristeza que os movimentos sociais estão fragmentados pelo egoísmo, seria uma chance de fazer diferente. Tem gente séria, gente compromissada e boa. Ao mesmo tempo tem gente que serve ao capital. Dá pra negar? Posso culpar? São questões que não dá para pensar do dia para noite. Agora, sem sombras de dúvidas, ser um completo submisso a isso não é a melhor opção. Ainda que seja arriscada não é a melhor.

Em um texto meu, talvez até profético, afirmei que meus cabelos ficarão grisalhos e que não desistirei de lutar por um mundo melhor. Sem covardia, sabendo que ontem queimavam livros e hoje boicotam os blogs. O que as letras de amor na história do Rap têm ligação com isso? Total… Nossos irmãos, pretos e pardos, quilombolas rurais ou urbanos estão lutando com qualidade e força. Ainda com o peso de batalhar contra o oculto, aquilo que é tão covarde e público, que não dá a chance de diálogo. Está decidido e pronto. Poderia ser diferente, isso ainda não foi percebido nem pelos poderosos. Ou talvez tenham visto, pensam nisso, só que não é do interesse dos senhores do mundo.

O amor periférico não vai morrer. Mesmo isolado e abafado de diversas formas ele ainda vive e promove suas revoluções de peso. Em qualquer espaço ele está presente. Ainda Mano Brown, “entrei pelo seu rádio, tomei e você nem viu”.

Fonte: http://jeanmello.org/novo/blog/poesias-de-favela/

Sharing is caring!

Deixe um comentário