Djonga é trabalho de base

Por Tassia Seabra

Recebi há um tempo, o convite de Rociclei, para escrever à Polifonia. Tenho muitos textos prontos e escrever se tornou um cano de escape. Uma vez escutei de um amigo: “Quem não tem flow escreve”. Comecei a repensar no assunto. Acredito que quem escreve com sentimento. Quem se emociona com suas próprias palavras. Tem um pouco de pretensão que alguém possa ler e se emocionar também. Mesmo que para dizer que aquilo não seja para você. Nunca tive coragem de enviar textos para ser publicado. Está é a primeira vez. Apesar de sentir muita vontade. Sempre achei minha escrita um pouco ácida. Tenho medo de me viciar nisso e não conseguir pagar as contas. Falar o que pensa pode te levar do “céu ao inferno” num piscar de olhos. Tinha o lance também de desconstruir comigo mesma o fato de ter crescido escutando que: “Só poderia ser escritora quem tem curso superior”. Coisas desse tipo que os pretos escutam o tempo todo para tentar nos atrasar. Mais do que já somos atrasados historicamente.

No dia do lançamento, combinei com minha amiga de tomar um vinho, escutando o disco do Djonga. Era um momento importante. Dias atrás encontrei com ele em São Paulo. E perguntei: “Por que dia 13 de Março?”. Juro que esperava uma explicação bem foda. Para mim seria uma data que marcou ele ou algo parecido… Tive a melhor resposta que ele poderia ter dado: “Por nada, pretona, foi coincidência”. Em seguida eu falei: “Pesquise sobre os acontecimentos históricos que ocorreram nessa data, e se for algo legal tu, se aproprie.”. Os brancos fazem isso toda hora mesmo… Rimos muito disso!

Comentei isso com um amigo, sobre a data não ter um significado específico. No dia do lançamento ele me mandou uma mensagem: “Lembra que tu falou sobre a data de lançamento do álbum do Djonga? Hoje nasceu o Chico Science.”. Em seguida encaminhei para ele. Que respondeu: “Obrigado, pretona, tô ansioso por causa dessa merda. Estamos fazendo parte da história.”. Não foi necessário se apropriar de nada. Apropriação não é prática dos nossos ancestrais. A nossa é reapropriar e contar a história como realmente foi. Como realmente é. E como será.

Assim que terminei de ouvir o disco Ladrão, quis escrever. Foi imediata a necessidade de falar sobre o impacto que me causou. E logo em seguida, me lembrei de quem escreve sobre Rap nas revistas mais importantes do país e isso me motivou ainda mais fazer esse texto. Um branco jamais vai conseguir compreender o que Gustavo quis passar. Ele botou tanto sentimento no bagulho. E merece algo mais verdadeiro.

Djonga – Capa- do álbum – Crédito: Assis176 e Bruna Serralha – 176studio / Arte: Álvaro Benevente Jr.

Não quero falar sobre técnicas. Beat, flow e a produção musical. Quero falar de algo muito maior: a mensagem. Um dia antes do ato de um ano do assassinato de uma preta que estava no topo e se tornou gigante. Entre tantos acontecimentos tristes. Onde nossa fé, nossa resistência foram abaladas. Chega Ladrão e nos questiona: “Você vai ser mais um preto, vivendo a vida em branco?”. Foi efeito imediato. Daqui a alguns anos quando falarmos desse período político histórico que estamos vivendo, para os nossos filhos o lançamento dessa obra será mencionado.

Eu estava curiosa para saber a forma como o conceito do disco seria trabalhado. É muito bom falar: “Ladrão”, para alguém e essa pessoa não entender de forma pejorativa. Ver esse nome no principal veículo de comunicação do país sem estar associado à página policial é uma vitória. Nesse caso, três vitórias consecutivas: “Hattrick”.

Os pretos estão mudando as escritas. Criando novos termos e dando novos conceitos para termos antigos. É dívida histórica. Vamos cobrar tudo! Não vamos deixar passar nada. Lembro de ter sentido a mesma coisa quando escutei: “Não sabe ler nem escrever, mas sabe o nome da delegada”. Fazia tempo que não escutava um rapper com uma narrativa simples e direta, de fácil compreensão. Onde o muleque da quebrada vai compreender. Perdemos as eleições presidenciais, pois a esquerda do país tem a necessidade de “cuspir diamantes sempre que abre a boca”. Para impressionar a eles mesmos. Dentro de sua “bolha revolucionária” que não chega nem no Capão, nem na Maré. Quando Mano Brown subiu no palanque na tentativa de lembrar o caminho de volta. Foi vaiado. Os brancos que em sua maioria formam a esquerda do Brasil e ocupam os principais espaços dentro das instituições que representam o “movimento”, não querem alternância de poder nem descer do palanque. E quando descem querem continuar a escrever nossos discursos para ouvir apenas o que agrada aos seus ouvidos.

Podemos comparar com os vários críticos brancos de Rap. Confusos. Tentando entender o conceito do disco. Li muita coisa boa de alguns brancos que compreenderam que a mensagem não é para eles e que vai além do entendimento teórico. Estranho foi ver alguns pretos ao descrever o disco usando narrativa de branco. Vai saber…. enfim… Desculpa informar, mas a mensagem passada fala sobre vivência empírica. Essas paradas não dão para comprar com o dinheiro do papai. Sinto muito… Os críticos ficaram acostumados com os pretos escrevendo som para “branquinho aplaudir”. E isso não é algo novo. Quantos sambas e músicas da MPB que fizeram sucesso foram compostos por pretos? Mas quem ganhou a visibilidade e a grana foi o intérprete branco? Entretanto, com o Rap não dá pra ser assim o tempo todo. Não vai ser assim. Não vamos deixar. Entende? A narrativa que o Djonga usa neste disco, pode ser definida como: Trabalho de base.

Ladrão é arremesso de três pontos. De quem foi lá e voltou trazendo sua fatia no bolo. Conquistou muita coisa e continua a manter o preto no topo. E levando vários consigo. Você já ouviu o álbum do FBC? É o Gustavo, pai do Jorge. Um chefe de família. Um cara apaixonado também. Desconstruindo formatos de relações. Tentando ser leal a um sentimento. Mas sem esquecer de ser leal a si. “Livre pra voltar” é o que acaba fazendo ficar. Conheci Malu pessoalmente. Ela é aquele sorriso todo mesmo. Passamos a madrugada jogando sinuca. Aquela que parece ser a segunda casa deles. Quando acordei tinha uma mensagem dela: “Chegaram bem?”. Ela realmente encanta. Mas não se engane que por trás da menina tem uma mulher se encontrando e transformando! E por estar do lado dele, a gente a abraça também.

O bonde virou empresa. O menino não virou Deus, mas se tornou “Rei do bairro”. Quando eu escutei: “Eae mãe, que que tu quer pow”, foi o primeiro arrepio. Qual malandro não quer falar isso para sua mãe? Qual “Ladrão” não quer dar o melhor para sua mãe? Para sua família? Pros seus manos? O sonho de todo ladrão: “é ver sua coroa de turbante e chofer, uma madame nagô”. Ele conseguiu e nos inspira a conseguir! Nos últimos dias, a palavra coincidência foi bastante usada para justificar alguns fatos da atual conjuntura política do nosso país. Sabemos que nada é por coincidência. Pelo menos eu acredito nisso. É isso, dia 13 de Março, nascia o grande arquiteto da música brasileira: Chico Science e 54 anos depois, nasce Ladrão. Já pode ser feriado!

Tassia Seabra é CEO na empresa Aqualtune Produções e colunista do Polifonia Periférica.

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5 thoughts on “Djonga é trabalho de base

  1. Primeiro: nunca pare de escrever, vc é magnífica!
    Segundo e até o infinito: texto FoDa, djonga é FoDa.

  2. Texto que faz brilhar os olhos logo cedo, olhos de quem nem abriu a janela do quarto pra ver o sol mas recebe a luz em forma de palavras. Confesso que essa visão que a Tassia passou surpreende, não julgando a capacidade dessa mulher incrível, mas de nós mesmo se acostumar com textos óbvios e rasos.

    Parabéns Preta, emocionou e ajudou a esquentar a manhã aqui em Salvador.

    Luz sempre irmã e seu livro, o que conta historias das heroínas brasileiras está aqui ti aguardando. Aquele abraço e tamo junto✊???✊?

  3. Texto que faz brilhar os olhos logo cedo, olhos de quem nem abriu a janela do quarto pra ver o sol mas recebe a luz em forma de palavras. Confesso que essa visão que a Tassia passou surpreende, não julgando a capacidade dessa mulher incrível, mas de nós mesmo se acostumar com textos óbvios e rasos.

    Parabéns Preta, emocionou e ajudou a esquentar a manhã aqui em Salvador.

    Luz sempre irmã e seu livro, o que conta historias das heroínas brasileiras está aqui ti aguardando. Aquele abraço e tamo juntos irmã ✊???✊?

  4. O texto é longo, necessitando de duas leituras, mas carregado de informações que necessitam de outros textos para „inflamar“ discursões.
    Nosso processo histórico já nos dá a justificativa de NECESSITAR de um produto como „LADRAO“ para tirar essa sociedade da postura cômoda e abrir espaço para falas!

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