Dcoumentário “Memórias do Chumbo”: O Futebol nos Tempos do Condor

Por Júlio Carignano

Desenho: Carlos Latuff

Recuperar a memória, não com o objetivo de saudar o passado, mas para evitar que ele retorne. Essa frase foi dita pelo escritor Eduardo Galeano em entrevista ao documentário Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor. O material é resultado de uma grande reportagem produzida pelo jornalista Lúcio de Castro exibida pela primeira vez entre os dias 18 e 21 de dezembro na ESPN Brasil.

A série mostra como as ditaduras militares na América do Sul que integraram a Operação Condor – a ‘multinacional do terror’ criada para exterminar a oposição de esquerda aos governos ditatoriais – estiveram presentes no futebol. Muito já tinha se falado sobre o envolvimento do futebol e política e como o esporte foi usado como propaganda por esses regimes autoritários, porém, particularmente, acredito que esse deva ser o material mais aprofundado sobre essa relação.

O esporte bretão e a pátria, o futebol e o povo, dois elementos que sempre estiveram unidos e com frequência políticos e ditadores especularam com esses vínculos de identidade. Mussolini usou as vitórias da seleção italiana para fortalecer o regime fascista na ‘Velha Bota’, assim como para os nazistas o futebol era uma “Questão de Estado” e para os franquistas espanhóis o Real Madri era um modelo de legitimação, uma espécie de “embaixada ambulante”.

A grande reportagem de Lúcio de Castro passa por quatro países de nossa América: Argentina, Chile, Uruguai e Brasil – países que tem em comum a paixão pelo futebol e a política. São várias passagens marcantes nas quatro partes do programa; na Argentina onde a algumas quadras do Monumental de Nuñes – estádio do River Plate e principal palco dos jogos da Copa do Mundo de 1978 – funcionava um dos maiores centros de tortura da ditadura argentina.

Fatos marcantes da ditadura de Pinochet, a derrubada de Salvador Allende, a partida “kafkaniana” disputada por somente uma equipe e histórias do Estádio Nacional que serviu como campo de concentração das vítimas do regime. Histórias em terras charruas, do Mundialito de 1981 no Uruguai, a “subversão” do ex-zagueiro Hugo De Leon (que vestiu a camisa do Grêmio) e a primeira vez que o povo gritou: “Se va a acabar, se va a acabar la dictadura militar!”.

Documentos e passagens reveladoras dos Anos de Chumbo no Brasil e da seleção que foi mais utilizada pelos militares: o escrete canarinho de 1970. Com um arquivo vasto de pesquisa, Lúcio esmiuçou o que foi esse período onde os setores conservadores e elitistas temiam a “ameaça vermelha”, preocupavam-se com os ventos que sopravam do Caribe, com o charme dos barbudos de Sierra Maestra e com a possibilidade de “novos Vietnans” em pleno Cone Sul.

Ditaduras tem o poder de confiscar símbolos nacionais e por aqui isso foi muito bem feito – como mostra o documentário. “Ame ou deixe-o” e “Pra Frente Brasil” que o digam. O programa detalha a perseguição implacável a João Saldanha, o “João Sem Medo”. Comunista convicto, foi derrubado do cargo de técnico da Seleção pela ditadura e sofreu uma perseguição voraz dos militares, sendo inclusive proibido de fazer a cobertura esportiva da delegação brasileira no México. Então contratado pela BBC para fazer artigos sobre a copa, Saldanha teve credenciais negadas pela então CBD [Confederação Brasileira de Desportos] em virtude de seus comentários considerados “incendiários”.

Memórias do Chumbo traz “furos jornalísticos” como o caso do major Roberto Câmara Guaranys – torturador do regime – que foi o chefe de segurança da delegação brasileira na Copa do México; uma entrevista com o jornalista Luis Claudio Cunha, autor do livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios, com detalhes do sequestro que teve participação do ex-jogador Didi Pedalada, que após passagens por vários clubes – entre eles o Internacional – foi prestar “serviços” ao DOPS gaúcho.

Revelações sobre o “Rei” que, após voltar campeão de terras astecas, foi ao DOPS dedurar “comunistas” que haviam lhe procurado no exterior para assinalar um documento contra a ditadura no Brasil e pedindo a anistia de presos políticos. A informação consta em documento oficial do 21 de outubro de 1970 que só agora aparece. Procurado pelo programa, Pelé e sua assessoria não se manifestaram sobre o assunto.

Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos de Condor é uma ótima sugestão para aqueles que são apaixonados por história, por futebol e por política. Fundamental para pesquisadores destes tempos de censura, suspensão do direito de votar, intervenção em sindicatos, cassação de direitos políticos, proibição de atividades ou manifestações de natureza política e fim do Estado de Direito.

Agraciado pela participação especial de Eduardo Galeano – outro pesquisador sobre o tema – Lúcio de Castro foi autor de um trabalho jornalístico único. Um documento histórico primordial no momento em que se discute a recuperação da memória e se cobra punição àqueles que cassaram direitos dos trabalhadores, torturaram, assassinaram com garras do Condor e seguem impunes.

“(…) a impunidade estimula o delinquente, seja um delinquente militar, civil, seja individual, seja coletivo, a impunidade é o motor maior para a repetição dos crimes”.

Eduardo Galeano

FONTE: http://sitiocoletivo.blogspot.com.br/2012/12/memorias-do-chumbo-o-futebol-nos-tempos.html

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One thought on “Dcoumentário “Memórias do Chumbo”: O Futebol nos Tempos do Condor

  1. Caramba, reviver tudo isso é um pesadelo,
    mas talvez também seja uma necessidade.
    É tão triste mostrar essa cicatriz pras
    gerações futuras. É triste reconhecer
    que a democracia é um laço tão frágil.
    Tão frágil, que eu me pergunto se é isso.
    Ainda bem que temos Pessoa: tudo vale a pena
    se a alma não é pequena.
    Beleza… nisso podemoa apostar!

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