Povo da Periferia

Por  Jean Mello

Algumas reações nas quebradas. A periferia ainda pulsa, apesar do clamor de Ndee Naldinho que fala da tristeza nos extremos da cidade ainda fazer sentido nos dias atuais. Mesmo assim, continuo acreditando que realmente a bússola aponta para os lugares que antes eram desacreditados e agora os saraus acontecem aos montes.

Voltei, ainda falando a favor da periferia e tentando quebrar alguns paradigmas. Ainda sensível ao ouvir alguns sons da antiga. Consciência Humana, Lembranças. Nem dá para dizer que não tem outras músicas, mas paro na de Ndee de Naldinho, Povo da Periferia.

“É tanta gente triste nessa cidade. É tanta desigualdade, desse outro lado da cidade. Mas eu tenho fé, eu tenho fé eu acredito em Deus. Olhai, por esses filhos teus…”. Anunciava o cantor ao buscar da lembrança aquilo que via todos os dias. Emocionado, porém realista. Com um clamor que se traduzirá ao longo do tempo em um despertar periférico, anunciado em 1997 por Mano Brown dizendo que “a profecia se fez como o previsto”. Sim, nos becos, vielas, quebradas em que os meninos na madrugada não dormem, o sol ainda vai brilhar. Sentimento que ainda está no coração de centenas de jovens que realizam mobilizações sociais de deixar muita gente de cabelo em pé. Um exemplo foi um lugar no Jardim Miriam – que ainda não visitei, mas me chegou a notícia – que deixou de ser um posto policial para ser um polo cultural.

Existem os que não estão fazendo muitas coisas na prática. Só que já incomodam por estarem na adolescência entoando o coro de que não existe amor em São Paulo.

Não só os que moram na beira dos córregos, em que as casas ainda são de pau ou de alvenaria. Do outro lado da cidade tem outros que tem boa comida na mesa, acordam pela manhã para ir para as escolas que ensinam a manter o domínio, gastam muita grana em cervejas importadas, acompanhadas de cocaína ou das balinhas do amor. Podem viajar para os cantos dos colonizadores, mas, mesmo assim, ainda se deixam levar pelo encanto das músicas que falam da realidade, quase nada tem de ilusão.

Mesmo com várias discrepâncias, defendo que aconteçam encontros respeitosos entre a periferia e o centro. Um tem a acrescentar ao outro. Desde que os interesses egoístas não sejam maiores que a causa que São Paulo e o Brasil tanto necessitam. Quem pensar um pouco, apenas alguns minutos, verá que é emergente. Cada anúncio de revolução é abafado pelo amplo repertório do sistema que nos detém.

Nem só de tristeza vive as favelas. Agora “a bússola aponta para periferia”, diz o poeta Sérgio Vaz. Os saraus dão vida às quebradas. Os eventos ressaltam o que o povo é realmente “lindo e inteligente”, repete o mesmo poeta. Preciosidade que apenas cresce e que a velha mídia em suas matérias tenta transformar em eventos bonitos, assim ninguém se dá conta de que nasceu um novo grito que a cada dia atravessa a ponte e rompe os extremos da cidade.

Deixa estar, chega o tempo em que a maioria, aos poucos, descobre que é a maioria, mesmo sendo classificada em pesquisas equivocadas como minorias. O que teremos de esperar é a necessidade de ter coragem para reação. Ferréz fala um pouco disso em uma de suas entrevistas. Como ele, tenho ódio da situação como está.

 Esses dias parei para tomar algo em algum lugar. Quando fui surpreendido por uma conversa que me deixou feliz:

– Firmeza negrão?

– Tranquilo, eu respondo.

– Caramba, faz tempo que você não aparece meu velho, queria mesmo falar contigo.

– Diga meu irmão (nem sei se essas conversas empolgantes acontecem apenas comigo, mas já estava sentindo que viria algum resquício de um amanhecer periférico em meus ouvidos)!

– Você trampa com esses lances de educação não é? Professor, educador, essas coisas todas, estou certo?

– Trabalho sim, e de vez quando escrevo umas paradas sobre esses assuntos.

– Pois é cara… Eu ia montar outro bar, mas resolvi oferecer o outro salão que comprei para minha filha fazer uns projetos sociais lá. Sinto orgulho dela, está no último ano de pedagogia e chegou com vários amigos e amigas me pedindo o espaço para ensinar umas pessoas a ler e escrever. Nem pensei cara, deixei eles começarem o trabalho. Em uma semana já tinha dez pessoas interessadas.

– Que bacana cara, isso é mesmo necessário.

– Lembrei de você, quero que vá lá conhecer o dia que puder. Pode ser?

– Demorou, depois me passa o contato da galera que eu marco.

– Depois nada! Vou passar agora…

Não classifico nada como ingênuo ou limitado. Uma atitude pode gerar muitas outras. Conheci uma quebrada em que a biblioteca comunitária começou na casa de um jovem, hoje em dia ela atende centenas de pessoas por mês. Não é o número que importa. Atitude com a real intenção de gerar mudanças acaba contribuindo para algo muito além, transformação.

Deus olha sim a periferia. Continua vigiando os ricos. Não é mais só desgraça que gira em torno de cada coração. Por isso, ainda o desabafo de Ndee Naldinho é legítimo, apesar de a esperança ter aumentado bastante desde a época dele. Um dia o jogo da história vai virar. Espero estar bem vivo para ver.

Ouça o clamor de Ndee Naldinho: Povo da Periferia

Fonte: http://jeanmello.org/novo/blog/povo-da-periferia/

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